Uma grossa camada de vidro temperado separava a plateia do desespero. Notava-se a respiração entrecortada entre o medo e o instinto. Era todo uma pelagem cinza amarronzada com uma cicatriz que adornava o seu dorso, tatuagem de bravura por conseguir escapar com vida de se lá o que, mas naquela tarde cinza de dezembro, com muita chuva, não fosse mais possível continuar.
O olhar atento, mas indiferente ao vidro escuro também mantivera-se displicente à mim, mesmo entre bicudas provocadas propositalmente pelo Adidas rosa bebê almofadada em direção à barreira translúcida. Ele não olhara para mim.
O pedaço do seu longo rabo – agora um toco – estava ao lado do meu tênis. Pavor e nojo contornavam a minha expressão facial. Contudo, senti ali, naquele metro quadrado, uma imensa tristeza, compadecia-me, queria poder dizer-lhe: Sai logo daí e fuja! Saia daí antes que te machuquem ainda mais! Saia daí e venha pra cá antes que te matem!
Tratava-se apenas de um rato, mas naqueles minutos pensei: O que difere seres humanos e seres ratos, já que todos lutamos pela sobrevivência, cada qual ao seu modo? E se em uma outra realidade domesticássemos esses ratos como se fossem gatos, cachorros, pássaros, hamsters…mas as reticências do meu pensamento calaram-me.
Ao mesmo tempo, temia por ele me atacar caso eu abrisse a porta da guarita e, por isso, abri e fechei rapidamente a porta barulhenta de vidro temperado algumas vezes tomando as minhas notas mentais. Movia-se em sinal de desconforto e soube então que ele me sentia. Ali soube que os meus olhos enevoaram-se diante da minha própria incapacidade e covardia.
Não imaginava capaz de desafiar-me a tentar ajudá-lo, pois ali estava a possibilidade de querer atacar a mim, covardemente, seja por instinto, seja por sobrevivência ou apenas por enxergar ali um predador, por ver-me como ser humano que sou.
No entanto, um senso surreal de compaixão e empatia tomou os meus olhos, a névoa desabou em cinza. Chovia naquela tarde, o céu estava cinza. O pelo cinza molhara-se com a cintilância das gotas. Meu choro queimava um rastro cinza homogêneo do antes delineado preto com o blush rosê. Sentíamos o mesmo gosto da dor e, então decidi acompanhar a sua solidão ali, dividida pela transparência do vidro temperado pela chuva.
E éramos nós três: O rato, a solidão e eu.